Reproduz-se abaixo artigo pertinente para pensar a ação “comunitária” da Cidade do Conhecimento na Praia da Pipa, a começar pelo “acontecimento” que foi o “advento” do pesquisador Gilson Schwartz ao município de Tibau do Sul, em maio de 2003.

Comunidade de destino Michel Maffesoli
Université Paris V – França

Resumo

Há momentos em que a grande História dá lugar às pequenas histórias vividas no dia-a-dia. Nesses momentos, a História esgota-se nos mitos. É nesses momentos que o trágico ressurge. Momento em que a morte já não é denegada, mas deliberadamente afrontada, publicamente assumida. Afrontamento do destino e regresso cíclico são os elementos essenciais que marcam a fundamental mudança que está em vias de se operar na concepção do tempo social. Esse não é um problema abstratamente filosófico, mas o fundamento de uma relação com os outros e com o mundo. Palavras-chave: comunidade de destino, estética, tempo social, tribo pós-moderna.

Abstract

There are moments when grand History gives way to small everyday stories. In these moments, History reduces itself to myths. It is then that tragedy comes back. Death is no longer denied but deliberately confronted publicly faced up to. The confrontation of destiny and a cyclical return are the essential elements which signal the crucial transformation that is about to happen in the conception of social time. This is not an abstract philosophical issue, but the basis for a new relationship with others and the world. Keywords: aesthetics, destiny of community, postmodern “tribe”, social time

Assim como a esfera do político para a modernidade, a estética corre o risco de se transformar na marca da pós-modernidade. Estética que precisa ser compreendida no sentido etimológico do termo, o fato de se compartilhar emoções. É uma certa estética1 que funda a comunidade, que funda o que denominei “tribo” pós-moderna. Há na idéia de estética uma “paixão de viver” que tende a chocar os espíritos mais estabelecidos que não são capazes, de fato, de compreender e analisar os pensamentos e modos de vida cotidianos. A estética nos lembra que o ser é acontecimento e, até mesmo, advento. Para retornar a oposição modernidade/pós-modernidade, podemos dizer que, nos quadros da primeira, a história desenrola-se, enquanto que no da segunda o acontecimento chega. O acontecimento faz intrusão. Força e violenta. Daí o seu aspecto brutal, seu traço inesperado, sempre surpreendente. É nisso que encontramos ainda a diferença de tonalidade entre o drama, ou a dialética, postulando uma solução ou uma síntese possível, e o trágico que é apórico por construção. O advento é singular, mas sua singularidade se enraíza num substrato arcaico intemporal. Trata-se, sem dúvida, dos “arcaísmos” repensados em função do tempo presente, vividos de uma forma específica, mas que deles preservam vivamente a memória das origens. Acontecimento-advento2 é o que gostaríamos de ressaltar. É certo que o que é vivido qualitativamente, com intensidade, se emprega para fazer ressurgir o que já está lá no seu mesmo do ser, seja individual, seja coletivo. Podemos, a esse propósito, fazer referência a M. Heidegger e à sua preocupação com um pensamento pós-metafísico, ao ressaltar esse mais “simples”, que serve de substrato à existência humana. Da mesma forma, a Leibniz que, no seu “princípio dos indiscerníveis”, se esforça por encontrar uma mediação entre a diferença absoluta e o regresso do mesmo (Vattimo, 1990, p. 21), Entre os dois, o romantismo ou a filosofia da vida acentua o aspecto trágico do presente assim como sua exigência, sua fome de viver e o sentido de urgência que o tempo presente secreta. Todas as coisas que podem ser resumidas através de dois termos, criação-consumação.

Não é isso que caracteriza essas surpreendentes atitudes contemporâneas, juvenis ou não, fundadas na estética, pouco ou nada preocupadas com as conseqüências de seus atos? As famílias plurais, ou os amores sucessivos e efêmeros mostram-no no domínio dos afetos. A versatilidade política ou as variações ideológicas testemunham-no no que diz respeito à vida pública. A aceitação de leis anárquicas da produção e, ao mesmo tempo, a extraordinária desconfiança a seu respeito, dá sentido ao que podemos chamar a desordem econômica. Há, em tudo isso, uma ambiência de indiferença que não favorece as preocupações com o dia de amanhã, e, bem pelo contrário, favorece um desejo de viver no presente por referência a uma maneira de ser que se constitui progressivamente, ao longo dos anos (Maffesoli, 2000).

Se tentarmos definir uma tal ambiência, podemos compará-la à criatividade do paganismo em sua força eternal. Um paganismo que se dedica a apropriar-se da vida, agarrando o que ela oferece, aquilo que ela apresenta. Um paganismo cuja exuberância, ligada à fruição dos prazeres do presente, conduz, por uma via audaciosa e desafiadora, uma vida atravessada pelo frescor do instante, o que este possui de provisório, de precário e, portanto, de intenso. J. G. Fichte (1981, p. 48), analisando a oposição de Maquiavel ao cristianismo, fala, a propósito, de “impiedade geral”. Podemos extrapolar o que esse autor diz sobre o paganismo. É bem a essência do cristianismo o que se encontra no projeto político, na concepção econômica da existência ou na procura de segurança proposta pelas diversas instituições sociais. Não esqueçamos que a economia, stricto sensu, é a herdeira da cristã economia da benção divina, em sua procura da salvação individual numa sociedade perfeita que está por vir.

É contra precisamente esse “cristianismo” que se insurge a impiedade contemporânea. O aspecto juvenil de sua efervescência, o “frescor” de suas revoltas, a procura exacerbada do gozo, multiforme, no presente, tudo isso o conduz a ver o “mundo” antigo como sua pátria de origem. “Mundo antigo” que é preciso, evidentemente, compreender de uma forma metafórica, quer dizer, tudo o que contradiz os diversos “imperativos categóricos” formulados pelo moralismo moderno. Trata-se do regresso ao antigo, ao arcaico, que é próprio da pós-modernidade. Como se, para além de um parêntese moderno-cristão (Dumont, 1991), para o melhor ou para o pior, no cotidiano e no paroxismo, de uma maneira suave ou, ao contrário, nos excessos destrutivos, se encontrasse o aspecto sublime e trágico da beleza do mundo. Só essa beleza do mundo seria importante, disso decorrendo o prazer de se desfrutar o que ela apresenta, ainda que seja justamente no ato de submeter-se a suas leis terríveis e irredutíveis que, em boa verdade, é preciso aceitar. O que nos invoca a temática do amor fati do qual se pode, à luz de um espírito nietzschiano, avaliar as importantes conseqüências sociais.

É despertando-se do sonho prometéico que cada vez mais muitos são aqueles que adotam uma atitude estóica em relação ao mundo. Estoicismo generalizado por meio do qual nos tornamos indiferentes a tudo aquilo contra o qual nós nada podemos fazer. Esse é o amor fati que faz com que o destino não apenas se realize, mas seja aceito, até mesmo amado como tal. Algo que engendra uma certa forma de serenidade que pode parecer parodoxal, mas que está na base das inúmeras manifestações de generosidade, de ajuda mútua, de atos benevolentes, de ações humanitárias diversas da qual a vida social não é avara de exemplos, e que têm a tendência a se multiplicar. Isso porque a aceitação daquilo que existe é acompanhada de uma preocupação em participar de sua existência, não se trata de controlar, mas de acompanhar um estado de fato de existência para, eventualmente, conduzir essa existência a tirar melhor proveito de si mesma. Fazer de sua vida uma obra de arte; participar da criatividade geral de vida, às suas próprias “custas”.

Essa é a lógica estética descrita em algumas palavras. Assim, a realização de si, ou do mundo, não se “faz” a partir de uma simples ação econômica, mas se completa numa interação ecológica. Pode ser que seja desta forma que passamos do “domínio” hegeliano-marxista da economia característico da modernidade ao que Bataille denomina a “soberania”, atuante sobre a reversibilidade estrutural desta, e que seria a marca dos períodos pré e pós-modernos.

Aplicando-se à situação contemporânea, uma tal “propensão” não deixa de secretar uma inegável sabedoria. Sabedoria, não-ativa sem ser passiva, que ressalta, num determinado momento, uma tendência que está inscrita na realidade considerada. Assim, para retornar uma idéia por mim já formulada (Maffesoli, 1996), ao moralismo e ao seu dever-ser, sucede uma “deontologia” que leva a sério as situações e que age segundo suas conseqüências. O moralismo repousa sobre a injunção de ser isto ou aquilo. O indivíduo deve se curvar ao projeto promulgado a priori, a sociedade deve, igualmente, tornar-se aquilo que o intelectual, o político, o perito pensaram que ela deveria ser. Bem ao contrário, a “deontologia” se acomoda a uma tendência geral, atenta à disposição do momento; enfim, concilia-se com as oportunidades do presente. Somente as situações têm importância. Nada é indiferente a este imanentismo, bem ao contrário, uma consciência constante, uma presença naquilo que é, o mundo, os outros próximos, o social. Em resumo, poderíamos falar de “co-presença” à alteridade sob as suas diversas modulações (Giddens, 1987); “co-presença” à intensidade variável, mas que integra a globalidade do ser, e já não apenas a tal ou qual de suas partes ou características.

Para se retomar uma temática conhecida, e (re)atualizada por Dodds (1959), podemos lembrar o papel do daimon na tradição grega. Sócrates, com certeza, encenou o seu, e podemos considerar que era uma crença generalizada à qual ninguém escapava. Entretanto, o que é importante ressaltar, no quadro de nossos propósitos, é a estreita ligação existente entre o daimon e a tykhé, essa necessidade cujo papel é tão importante no contexto da cultura antiga. Em uma palavra, podemos dizer que muito mais coisas dependem da necessidade do que do caráter do indivíduo. É isso mesmo que se exprime, de diversas maneiras, nas tragédias, somos mais agidos do que agimos verdadeiramente por nós próprios. O destino está presente, todo-poderoso, impiedoso, o qual, apesar da vontade do sujeito, orienta no sentido daquilo que está escrito. Trata-se de uma forma de pré-destinação. Para se citar apenas um exemplo entre muitos outros, todo o mito de Édipo se constrói sobre uma tal “necessidade”, com as conseqüências paroxísticas que todos nós conhecemos.

Com efeito, a estética tribal, a perda de si no outro, enfim, a criação e sua consumação, tudo isso só acentua em grande escala o crescimento do que é impessoal. O que está em jogo neste regresso do destino é a negação do próprio fundamento filosófico do Ocidente moderno, o livre-arbítrio, a decisão do indivíduo ou dos grupos sociais agindo concertadamente para fazer a História, sendo sua conseqüência o grande fantasma da universalidade. Em contrapartida, a afirmação, ou reafirmação, dos sistemas cíclicos torna caduco este livre-arbítrio (Dodds, 1959, p. 151). Os diversos “orientes” míticos que fazem sua intrusão na pós-modernidade reúnem-se com as forças impessoais e com a inevitabilidade de suas ações. Sejam as diversas filosofias, ou mais simplesmente as técnicas budistas, hinduístas, taoístas, as vidências africanas, no contato direto com as forças telúricas, os cultos de possessão afro-brasileiros, sem esquecer as múltiplas práticas New Age, ou simplesmente o fascínio que exerce a astrologia, tudo isso acentua, essencialmente, o fato de que o indivíduo não é, na pior das hipóteses, senão um joguete, ou na melhor delas, o parceiro de forças que o ultrapassam, às quais é preciso que ele se acomode.

Como expressão da mitologia contemporânea, os filmes de ficção científica, inúmeros videoclipes, e até mesmo a publicidade, destacam essa relativização do livre-arbítrio por uma “força” supra-individual. Sem dúvida, os espíritos críticos não deixam de ironizar isso, mas sua pregnância é inegável. Essa “força” importuna o imaginário social, assegura o sucesso dos espetáculos folclóricos e das reconstituições históricas, lança as multidões para os lugares de peregrinação e faz o triunfo dos romances iniciáticos. É a isso que podemos denominar de uma “ética da estética”, outra maneira de responder as questões dos alquimistas medievais em seus questionamentos sobre a “glutinum mundi”, essa “cola do mundo” que fazia com que, em todo o caso, houvesse alguma coisa mais do que nada, e de que essa qualquer coisa fosse um todo coerente (Maffesoli, 1993). A “cola do mundo” seria, assim, numa força impessoal, um fluxo vital, através do qual cada um e cada coisa participa de uma misteriosa correspondência entre forças de atração.

São numerosos os poetas, artistas e utopistas que celebraram uma tal “atração”. Ela vem se tornando em realidade juvenil insuperável, possível de ser identificada nos diversos espetáculos musicais tanto quanto no sucesso das diversas emissões de reality-shows. Em todos esses casos se exprime o desejo inconsciente de estar-junto-com o outro, de existir pelo sob o olhar do outro. É possível fazer desses fenômenos uma leitura socioantropológica. É o que propus, de minha parte, através do termo “orgia”, isto é, a paixão partilhada, a empatia social. Ou ainda, subvertendo um pouco a expressão de E. Durkheim, poderíamos denominar, a esse propósito, de uma “solidariedade orgânica”, fazendo com que, queiramos ou não, qualquer um faça parte, essencialmente, de um conjunto que o constitui naquilo que ele é. Assim, nós só existimos porque o outro, o meu próximo, ou o Outro, o social, nos concedem a nossa existência. Eu sou como sou porque o outro me conhece como tal. Uma tal assertiva pode parecer chocante, mas não é dessa forma, empiricamente, que as sociedades funcionam, das menores às mais complexas. M. Douglas (1992, p. 12) no seu livro Como Pensam as Instituições, mostra bem um tal “efeito de estrutura”. É esse mesmo fenômeno que nos permite compreender que seja rejeitado, estigmatizado ou marginalizado aquele que não se curva a um tal reconhecimento. A sua exclusão reside no fato de ele não possuir “o odor do clã”, ou não ter desejado obtê-lo.

Assim, para além do individualismo, que ele seja teórico ou metodológico, a vida social é pura expressão de sentimentos de pertença sucessivos. Nós somos membros, nós fazemos parte, nos agregamos, participamos, ou, para dizer trivialmente, “nós somos nisso”. Se pensarmos no caso dos bons tempos da modernidade, mesmo para o caso da autonomia, da distinção, da afirmação da identidade individual ou de classe, tudo isso não passa de uma miragem, uma ilusão, um simulacro. Sociologia da orgia foi como a denominei, ou seja, a ordem da fusão, até mesmo de confusão, fazendo com que qualquer um exista segundo um princípio de heteronímia, no seu sentido estrito, a lei eu recebo do outro.

Nesse sentido é que podemos compreender a força do regresso ao arcaico e a pregnância de figuras emblemáticas e de outros arquétipos no cotidiano. O fenômeno dos grupos de fãs nas novas gerações não é senão uma forma paroxística destas múltiplas adesões vividas sem mesmo se lhes prestar atenção. É assim que “participamos” magicamente com tal cantor de rock, com um certo ídolo esportivo, com um tal guru religioso ou intelectual, com tal líder político. Participação que gera uma comunhão quase mística, um sentimento comum de pertença. Numa observação sutil, G. Durand (1982, p. 207), evocando grandes figuras trágicas, como Don Giovani, assinalada que elas se transformam em puros “objetos”. Mais objetos do que sujeitos pelo fato delas só existirem senão no pensamento dos outros, tornando-se um “tipo ideal”.

Podemos prosseguir a análise ressaltando que essas “grandes abstrações”, esses arquétipos tendem a se multiplicar e até a se democratizar. Há, cada vez mais, pequenas grandes figuras. No limite, cada tribo pós-moderna terá sua figura emblemática como cada tribo, stricto sensu, possuía, e era possuída, por seu “totem”. Em todos os casos, a identidade, o livre-arbítrio, a decisão e a escolha individual podem, certamente, ser afirmados ou reivindicados, uma vez que são, verdadeiramente, tributárias de identidades, decisões e escolhas de grupo de pertença. Notemos, por outro lado, que esses arquétipos retomam força e vigor ao mesmo tempo em que afirmam a ambiência trágica do momento. Há nisso, eu insisto, uma correlação que merece nossa atenção.

Ao invés de se oporem entre si, de uma maneira irredutível, ao invés de serem ultrapassadas, segundo um mecanismo dialético e dramático, numa síntese lenificante, a liberdade e a necessidade são, em certos momentos, vividas numa tensão “contraditorial”, isso que denominei harmonia conflitual. Isso, certamente, nos faz pensar na tradição mística, ou na filosofia hinduísta, mas igualmente no processo de individuação, descrito por C. G. Jung (1980), onde o “eu” vive e sente como objeto de um Sujeito que o engloba. E isso é a experiência do Si que não destrói o indivíduo empírico, o “eu”, mas que, pelo contrário, o enaltece, ou seja, o eleva a uma condição mais vasta. Eis aí a intensidade e a jubilação de uma situação trágica, a do amor fati nietszchiano, ser livre diante da necessidade plena do amor (Aurigemma, 1992, p. 250). Em resumo, uma forma de dependência plena de quietude na medida em que a realização individual representa um “mais ser”, revelando-o a ele próprio.

Podemos imaginar, contemporaneamente, as situações de um “mais ser”. Grandes multidões, grandes massas de todas as ordens, transes múltiplos, fusões esportivas, excitações musicais, efervescências religiosas ou culturais. Todas as coisas que incentivam o indivíduo a uma forma de plenitude e que nada retira da funcionalidade econômica ou política. Há, em todos esses fenômenos, uma espécie de participação mágica ao estranho, ao estrangeiro, a uma globalização que ultrapassa a singularidade individual. Globalidade que é da ordem do sagrado, com o qual cada um se comunica. Ironia do trágico, ou estratagema do imaginário coletivo, ele que não coloca em jogo, no circuito social, esta dimensão numinosa3 que a modernidade havia acreditado ter retirado da vida social? Reencantamento do mundo? Certamente, assiste-se, inegavelmente, à superação da simples utilidade, do simples utilitarismo, seja ele individual ou social.

Em uma tal perspectiva, o mundo e o indivíduo não se tornam, progressivamente, aquilo que eles devem ser, em função de uma finalidade programada, mas “tornam-se” no que são. De certa forma, o arquétipo não é senão uma ajuda nesse desdobramento criativo, qualquer coisa que serve de revelador, que se emprega para fazer sobressair o que já se encontra lá. É nesse sentido que pode se afirmar uma estreita ligação entre a dimensão trágica do arquétipo e a acentuação de uma concepção cíclica do tempo.

Essa proximidade estrutural entre o procedimento arquetipal, o inconsciente coletivo e o ciclo devem-se ao fato, para retomar a fórmula de C. G. Jung (1980),4 de que todo o processo vital segue suas próprias leis internas. Para se tomar, aqui, o exemplo do inconsciente, não podemos fazê-lo avançar apressadamente, pois ele se manifesta no interior de seu próprio tempo. À imagem de uma fonte que surge, ressurge ou seca segundo um ritmo que lhe é próprio, nunca podemos prever, de uma forma segura, a emergência do fluxo do inconsciente.

Podemos igualmente reaproximar todas essas idéias do pensamento alquímico que, como na dinâmica do inconsciente, possui a particularidade de ser circular, ou melhor, ainda, “espiralesco” na produção de imagens. Essas não obedecem tampouco ao linearismo mecânico que é o da simples razão, mas segue um conjunto de circunvoluções que, por tais motivos, complica particularmente a sua interpretação. Há, com efeito, uma estrutura labiríntica ao mesmo tempo no funcionamento do inconsciente e no mundo das imagens. E se o primeiro domínio foi amplamente investido de uma interpretação intelectual, o mesmo não ocorreu no que diz respeito ao mundo das imagens, ainda bastante ignorado, desprezado e marginalizado pelos pensadores, ou pelo menos por aqueles que defendem um ponto de vista estritamente racionalista.

O certo é que as circunvoluções ou, se nos referimos a uma teorização junguiana, as “circo-ambulações”, descrevem o lento trabalho circular que qualquer um faz para aceder, pouco a pouco, à realização do que denominei, mais acima, de um “ser mais”. Aquilo que é o trabalho de toda uma vida (C. G. Jung, 1980, p. 145), a criação em seu sentido estrito. A “mandala” tibetana é uma boa ilustração, para a tradição oriental, tanto quanto o mito da procura do Graal o exprime bem na tradição ocidental. Em todos os dois casos existe a repetição, movimento cíclico e concepção trágica da vida. As figuras arquetipais procedem sempre por redundâncias, fazem sempre referência a um tempo mítico, o do não datável dos nossos contos e das lendas, “era uma vez”, de “naquele tempo” (illud tempus).

Isso é evidente para o caso das ilustrações míticas stricto sensu, aquilo que a literatura, o cinema, o teatro ou a canção, por exemplo, não são mais do que avatares. Mas este fenômeno da intemporalidade, de acentuação cíclica ou trágica, aparece igualmente na encenação da vida cotidiana ou, a fortiori, no caráter espetacular da vida das stars contemporâneas. O puer aeternus que representa, por exemplo, Michael Jackson, a depravada arrependida que representa Madonna ou, mais prosaicamente, a figura manipuladora do operador de mercado contemporâneo, sem esquecer o herói belicoso que lembra a tal figura esportiva, tudo isso é a mola propulsora do (re)encantamento do mundo com forte apelo ao inconsciente coletivo. Essas figuras não criam nada em particular, elas só fazem repetir, (re)afirmar caracteres e maneiras de ser antropologicamente enraizadas. Elas (re)criam o que já está aí presente. É esse aspecto cíclico que faz, aliás, com elas sejam elevadas à gloria. E é comungando dessas redundâncias encenadas, identificando-se com elas, que qualquer um, ao final de uma longa iniciação, que na maioria das vezes é inconsciente, se supera, “explode”, “brilha”, de uma forma criativa, em algo que lhe faz ultrapassar seu fechamento, ou seu encolhimento, num pequeno “eu” individual. E nisso reside a estreita ligação entre a criação e a consumação entre os jovens que tão bem ilustram, inclusive, sob diversos aspectos, as pesquisas de D. Jeffrey (1998, 2003).

Quer nas expressões empíricas da arte contemporânea ou, o que não está forçosamente muito distante, para o caso das contradições míticas o que se observa é a presença de uma redundância fundamental. C. Lévi-Strauss e G. Durand insistiram, com vigor, sobre o aspecto da repetição, da “bricolage” que lhe é correlato, encontram-se presentes nas grandes obras espirituais da humanidade (Durand, 1980, p. 130). De certa forma, o aspecto repetitivo, quer seja o “retorno do mesmo” nietzscheniano, a idéia obsessiva do escritor, a frase musical típica do músico, a “mão” do pintor, a sempre eterna digressão teórica do pensador, e mesmo o refrão reconhecível do cantor, tudo isso ressalta a presença do intemporal na história, de uma espécie de imobilidade no movimento.

Assim, é tendo-se presente a redundância do mito e a sua repetição nas criações cotidianas (Durand, 2000), sem esquecer, evidentemente, aquela que está em curso na vida diária, que podemos compreender a parte de íntima emoção secretada pela familiaridade dos fenômenos, das situações, das idéias, etc., que regressam na vida social com regularidade. É essa emoção que caracteriza a estética comunitária. O “habitus”, tal como Santo Tomás de Aquino o analisou, insiste no caráter estruturador do costume estabelecido. A metáfora da “dobra” (pli) que Gilles Deleuze (1988) propôs para reflexão, é uma forma de atualizar a pregnância do costume. Todas as coisas revelam que a perfeição, individual ou coletiva, não reside necessariamente num progresso sem fim, tal com postulou a pedagogia moderna, mas pode, em certos momentos, se efetivar através de uma adequação ao que se apresenta de forma recorrente: os usos e costumes, os mitos e ritos, os comportamentos habituais de uma dada sociedade. Uma espécie de criação como recriação. É exatamente isso que propunha a sociedade pré-moderna, e é possível que seja isso que é retomado na pós-modernidade e que nos remete à “comunidade de destino”.

Traduzido do francês por Ana Luiza Carvalho da Rocha

Referências

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VATTIMO, Gianni. Ethique de l’interprétation. Paris: Éditions La Découverte, 1990.

Recebido em 01/11/2005
Aprovado em 18/11/2005

1 O autor faz referência à jornada de estudos sobre L’Éthique de l’Esthétique, que se realizou no dia 17 de novembro de 1988, no Goethe Institut e na Sorbonne, com participação de J. Baudrillard, Gillo Dorfles, Paolo Fabbri, D. Kempf, Marc Le Bot, Michel Maffesoli, Olivier Magnard, Gérard Namer, M. Perniola e C. Wulf. (N. de T.).
2 O autor procura realçar a idéia de profecia que está presente no acontecimento, sua feição de anunciar a chegada de algo estranho, estrangeiro, ao lugar (événement-avènement). (N. de T.).
3 Este adjetivo, “numinoso” (que decorre do “numen”), aparece pela primeira vez no livro de Rudolf Otto intitulado Le Sacré (Paris: Payot, 1949; 1ª edição em 1917). A experiência numinosa é a experiência constitutiva do sagrado, decorrente da soberania divina. Para este autor o homem é especialmente dotado para o sentido religioso, sendo, portanto o esquema afetivo do numinoso um a priori formal da afetividade. (N. de T.).
4 O autor se refere ao pensamento de Jung que atribui aos arquétipos, e suas formas simbólicas inerentes ao inconsciente coletivo, uma potencia numinosa, pois manifestam algo que está além da ética e do racional, algo que seria, inclusive para Emile Durkheim (em Les Formes Élémentaires de la Vie Religieuse, de 1912), característico da experiência do sagrado e do fenômeno religioso. (N. de T.)

© 2006 Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – IFCH-UFRGS