midia.JPGRaiz – Cultura do Brasil – Ano II – Número 18 – Alexandre Bandeira

A Cidade do Conhecimento – USP celebra seus 5 anos com Jorge Bodanzky e Jorge Mautner

IMAGINE UM DOS mais modernos celulares disponíveis no mercado. Agenda para mais de 500 nomes, monitor de 262 mil cores, conexão wireless com a internet, câmera digital de 7.0 Megapixels. E como toque, ou melhor, ringtone, um canto que existe há mais de 500 anos.

Para Gilson Schwartz, não há nada de errado com essa imagem. Ele é diretor da Cidade do Conhecimento – nome fantasia, preferível ao oficial Centro de Pesquisa e Extensão em Economia da Informação e das Artes Audiovisuais da USP que comemora dias 29 e 30 de agosto, cinco anos de projetos de democratização e emancipação Digital. Um dos projetos atuais da Cidade do Conhecimento é justamente a utilização de celulares como meios de divulgação e promoção da cultura popular. Depois de uma experiência-piloto bem-sucedida, na praia de Pipa, no Rio Grande do Norte – fundos de tela com pinturas de artistas locais, ringtones com o tradicional coco de zambê –, Schwartz pôde realizar trabalhos semelhantes em outras zonas de conteúdo, como o povo Xavante da aldeia de São Pedro, no Mato Grosso.

Ciente de que qualquer nova tecnologia requer uma dose de ceticismo e crítica, mas confessando entusiasmo, Schwartz explica como a mídia celular pode contribuir com a cultura ao introduzir um elemento novo no cenário digital: a tarifação. A internet divulga, mas é gratuita, enquanto o celular gera renda para o artista popular, através de um percentual do valor cobrado por download.

De olho no mercado internacional (“são 2 bilhões de aparelhos no mundo”), ele conta que está sendo planejado um evento de lançamento do catálogo Xavante (fotos, fundos de tela, ringtones) na França, em outubro. Se tudo der certo, o evento contará com um convidado especial: o antropólogo Claude Lévi-Strauss, hoje com 97 anos. “Em 2005, nós apresentamos um protótipo para ele, um celularzinho com um toque Xavante. De repente, me ocorreu: eu sou da USP, que está fazendo 70 anos este ano, que é o Ano do Brasil na França, e estou aqui falando com Lévi-Strauss, o mestre que ajudou a fundar a USP e que se dedicou a estudar os povos indígenas do Brasil, estou mostrando um toque Xavante para ele. A força ritualística do momento foi muito forte. Eu me senti uma peça de uma coisa muito maior, a história sendo escrita”, diz o professor, emocionado.

Na entrevista a seguir, Schwartz fala da experiência na praia de Pipa, reflete sobre o perigo de se deixar levar pelo hype tecnológico, alimentado pela publicidade, e diz: “Precisamos subordinar as novas mídias aos projetos sociais, e não o contrário”.Na Cidade do Conhecimento, vocês usam o termo emancipação digital, que não é muito usado entre os que pensam as tecnologias digitais.É uma crítica ao conceito de inclusão digital. Ao falar em inclusão, você já coloca que a pessoa tem de se plugar, tem de estar integrada no sistema. Como se a inclusão fosse por definição algo bom. E não é bem assim. Tem gente que está “superincluída”, “superconectada”, e é completamente alienada, só recebe informações de fontes erradas. O sujeito carrega um notebook na bolsa, um celular pendurado na calça, ouve música de um iPod, mas é um perfeito idiota. Para nós a prioridade está na qualidade e na autonomia do uso das mídias digitais: as pessoas têm de subordinar as novas tecnologias aos seus projetos, e não o contrário. Por isso nós falamos em emancipação – e por isso, também, preferimos o termo “sociedade do conhecimento” a “sociedade da informação”. Porque quem tem conhecimento já refletiu sobre a informação, amadureceu a consciência, tem capacidade crítica.

Qual a gênese do trabalho que vocês fazem na praia de Pipa, no Rio Grande do Norte?

O projeto Rede Pipa Sabe – o nome oficial é Mídias Digitais para o Desenvolvimento Local – começou a partir de uma visita que fiz em maio de 2003. Fui fazer uma conferência em Natal, me recomendaram conhecer a praia de Pipa e, chegando lá, o que me surpreendeu foi a força da cultura de raiz ainda presente. Além de todo o turismo, todas as baladas, o lugar tem um patrimônio ambiental extraordinário e um patrimônio cultural ainda mais extraordinário. Tem remanescentes de quilombos, comunidades de pescadores miscigenados entre índios e negros, tem o coco de zambê, que foi objeto de veneração de Mário de Andrade. Isso há séculos. Mas aí chegam os surfistas, os turistas, a classe média, e vão colocando camadas sucessivas de lixo urbano, tecnológico, comercial, em cima daquela matriz cultural. Aí vêm a prostituição infantil, a droga, a destruição do ambiente, hotéis construídos em cima de falésias, o diabo. É uma coisa fantástica: você anda na rua, é como se estivesse num shopping do centro de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Mas, ao mesmo tempo, se você souber olhar, percebe uma casinha de pescadores que sobrou ali, que não foi vendida. Tem um nativo ali, que vendeu os terrenos atrás para três pousadas e hoje vive de renda. Então é uma situação de complexidade muito grande, porque a cultura local está meio sufocada, mas também se serve disso tudo. Diante dessa situação – e ao percebermos que a comunidade já mostrava um grau de mobilização, tanto entre os nativos como entre alguns empresários, já extremamente preocupados com a ação destrutiva de sua própria presença – propus que implantássemos um projeto-piloto ali, do que vínhamos estudando em São Paulo: como usar a mídia digital para recuperar os valores da tradição cultural e facilitar a organização dos setores da comunidade local. Então, conseguimos um patrocínio da Caixa Econômica, montamos um telecentro, instalamos uma antena, começamos a oferecer oficinas de culinária, de sexualidade, de inglês, espanhol, italiano – para a garotada atender o turista –, de pesca artesanal, grafite, carpintaria.

Sinto que a tecnologia fica praticamente em segundo plano.
É uma ferramenta. E para registrar essas coisas: porque agora as imagens das aulas, os áudios e vídeos, tudo isso passa a ser difundido.
E o celular, agrega em quê?O celular traz uma questão fundamental que é a da geração de renda. Porque a internet é importante – a tal da inclusão digital botando telecentro no país todo – mas entre isso e aparecer o “dindin” na conta do indivíduo, há uma longa distância. A internet é gratuita. O mestre de coco vai ter um trabalhão para fazer fotografar, filmar, colocar no site uma apresentação dele, e aí? Ao passo que o celular, pela característica do mercado (não é nem pela tecnologia em si), não se faz nada sem pagar. Tudo no celular é tarifado. Aí veio a conclusão: se a gente colocar o coco de mestre Geraldo, não na internet, mas no celular, e houver a divulgação disso, qualquer um que quiser baixar o ringtone de mestre Geraldo automaticamente gera renda para ele.

Como funciona essa distribuição de renda?

O padrão hoje no mercado é: a operadora retém 50% do valor do ringtone – que todo mundo acha um exagero. Claro que tem exceções. Se o estúdio do Harry Potter disser: “Só faço com você se pegar apenas 30%”, o cara sabe que Harry Potter vai vender milhões. Ou no caso do Big Brother Brasil, não sei que acordo a Globo e a Endemol têm com as operadoras de celular, mas aquilo gera 20 milhões de reais numa noite de votação – o poder de barganha é enorme. Bem diferente do poder de barganha da USP. No nosso caso, a gente até tem tentado argumentar com o mercado, operadoras e integradoras, para que ações como essa sejam encaradas como ações de responsabilidade social. Dizemos para eles que eles ganhem com o “funk da Atoladinha”, com o Big Brother, mas nesse caso deixem a comunidade ganhar mais.

Os outros 50% vão para quem?

Dos outros 50%, metade vai para o que se chama integradora, que é a empresa que faz o conteúdo chegar na operadora, e os outros 25% vão ser distribuídos entre a universidade e a comunidade.

Integradora? Precisa-se de uma terceira empresa para digitalizar o conteúdo? Não é esse o papel da Cidade do Conhecimento?

Na verdade, é uma prática do mercado. As operadoras não querem se envolver com esse trabalho, preferem terceirizar. A gente até tem tentado negociar, para lidar diretamente com a operadora – que ela receba 60%, e a comunidade receba os outros 40%. Mas é o começo, não posso afrontar uma prática atual do mercado. Mais para frente, nada impede que se firmem novos acordos de partilha e geração de receita.

Vamos falar mais um pouco da mídia celular. Não é um pouco limitada, como meio de divulgação da cultura? Os ringtones são sons muito simplificados, o wallpaper é apenas uma imagem. Não é exagerado o entusiasmo que tem sido gerado?

Com certeza, nos últimos anos, cada nova mídia que surgiu foi acompanhada de um hype. A internet teve até uma bolha gigantesca. Daí a importância de evitar o termo inclusão social, e pensar em emancipação. É claro que do lado da indústria é diferente – inventamos um produto, queremos mais é que ele seja consumido por milhões de pessoas. O hype é tão acentuado que as empresas lançam campanhas milionárias antes de existir a própria tecnologia. A propaganda chega ao ponto de criar a vontade de consumir o que nem existe ainda. Qual o papel da universidade? Reservar uma dose de ceticismo, fazer uma crítica, verificar se essa nova mídia é adequada para os fins da cidadania, da comunidade. E ao mesmo tempo tentar dialogar com o mercado – pode ser que a nova mídia seja um fiasco, mas estamos participando de perto da história toda.

Mas você vê vantagens como mídia? Como transmissão de conteúdo?

Eu, particularmente, tenho ficado cada vez mais entusiasmado. Porém o conceito-chave hoje é o da multimídia. Ninguém pensa só em celular. Deve-se pensar o seguinte: vou lançar um filme, saindo do filme o público pode fazer um download do ringtone com a trilha sonora. Quem quiser saber mais informações sobre o filme vai à internet, e no site tem ali mais um brinde, uma imagem que ele pode usar como fundo de tela do seu computador. E mais tarde vai sair um livro, com CD encartado. Quer dizer, o segredo é articular combinações entre as mídias. Claro, celular é interessante, mas limitado; só que se você combinar a limitação do celular com a do rádio, a do livro e a da internet, você tem um potencial enorme.

Na passagem de conteúdo relacionado com cultura popular para o celular, como preservar o contexto? Como evitar o exotismo?

A decisão estratégica é envolver na curadoria desse processo pessoas que tenham autoridade para falar sobre cultura popular. Sociólogos, antropólogos, pesquisadores, artistas que tenham uma filosofia de produção cultural muito próxima da nossa. Por exemplo, o [cineasta] Jorge Bodansky. Um grande nome, homenageado deste ano no festival de documentários É Tudo Verdade [ocorrido em março], tem uma prática reconhecida internacionalmente de valorização da cultura popular. Então, fizemos uma parceria com o projeto Navegar Amazônia, do Bodansky. Outro projeto maravilhoso também é a Barca ( http://www.barca.com.br ), que viajou por mais de 300 zonas de conteúdo, refazendo a trajetória de Mário de Andrade – a Cidade do Conhecimento vai distribuir por celular o conteúdo deles. O mais bacana é que no processamento do material também nos permitimos recriações. O Itamar Vidal quis fazer ringtones nos quais misturava coco de zambê com John Coltrane, Stravinsky e Jaco Pastorius. Isso da cabeça dele.

Não é um trabalho museológico de preservação da cultura.

É uma preservação criativa da cultura popular, que recontextualiza. Valoriza o passado mas integra essa produção numa rede nova. E os resultados dessa rede poderão ser extraordinários. De repente, vai ter alguém num telecentro da periferia de São Paulo, fazendo hip-hop, vai fazer download desse material e usar como sample.

Qual o estágio atual do projeto?

Temos o primeiro catálogo, da praia de Pipa. Depois de uma longa tramitação sai uma verba do Ministério de Ciência e Tecnologia para consolidar essa transferência de tecnologia para a comunidade de Pipa. É um projeto de 500 mil reais. A gente tem um ano para passar tudo para eles, e deixá-los continuar. Porque a intenção do projeto sempre foi a da incubação, com prazo definido para nos retirarmos, depois que a comunidade tivesse autonomia para assumir o projeto. Ao mesmo tempo, estamos firmando essas outras parcerias, com o Bodansky, com a Barca, com o ator Marcos Palmeira, que está fazendo um trabalho na aldeia Xavante São Pedro, em Mato Grosso, com grafiteiros em São Paulo. Outra frente importante é a exportação. Estamos trabalhando para que o sujeito com celular em Tóquio, Seul, Paris, Nova York, baixe também o coco de zambê, a ladainha, o que mais for captado por esses projetos. Temos uma grande expectativa nesse mercado mundial de ringtones e conteúdo para celular – um mercado bilionário, são 2 bilhões de aparelhos no mundo. Se tivermos um milésimo disso, podemos fazer uma diferença grande para as comunidades.